Radiologia Brasileira - Publicação Científica Oficial do Colégio Brasileiro de Radiologia

AMB - Associação Médica Brasileira CNA - Comissão Nacional de Acreditação
Idioma/Language: Português Inglês

Vol. 50 nº 5 - Set. / Out.  of 2017

RELATO DE CASO
Print 

Page(s) 335 to 337



Impacto isquiofemoral secundário a osteotomia intertrocantérica valgizante: relato de caso

Autho(rs): Alice Duarte de Carvalho1; Flávio Luís Garcia2; Marcello Henrique Nogueira-Barbosa3

PDF Português      

PDF English

Texto em Português English Text

Descritores: Impacto femoroacetabular; Ísquio; Fêmur; Osteotomia; Quadril.

Keywords: Femoroacetabular impingement; Ischium; Femur; Osteotomy; Hip.

Resumo:
Nós relatamos um caso incomum de impacto isquiofemoral secundário a deformidade resultante de osteotomia intertrocantérica valgizante para tratamento de epifisiólise da cabeça do fêmur esquerdo.

Abstract:
We report an unusual case of ischiofemoral impingement secondary to valgus intertrochanteric osteotomy. The osteotomy was performed for treatment of epiphysiolysis of the left femoral head.

INTRODUÇÃO

A avaliação do sistema musculoesquelético por métodos de imagem tem sido motivo de uma série de publicações recentes na literatura radiológica nacional(1-8).

Atualmente, várias síndromes de impacto ósseo são reconhecidas como possíveis causas de dor no quadril, e a mais comum delas é a síndrome do impacto femoroacetabular(9-11). A síndrome do impacto femoroacetabular é rara e está relacionada ao impacto entre o ísquio e o trocanter menor do fêmur(12). Inicialmente, esta condição foi descrita em três pacientes com antecedente de cirurgia prévia do quadril, dos quais dois desenvolveram o quadro após artroplastia do quadril e um após osteotomia valgizante do fêmur proximal(13). O impacto isquiofemoral ocorre também em pacientes que não foram submetidos a procedimento cirúrgico prévio do quadril(14,15). Outras causas potenciais para essa relação anormal incluem variabilidade anatômica do fêmur proximal, quadril em valgo(9,13,14), trocanter menor proeminente ou existência de um osteocondroma séssil(14).

O objetivo deste relato é ilustrar um caso raro de impacto isquiofemoral que se desenvolveu cronicamente após procedimento de osteotomia valgizante para tratamento de epifisiólise da cabeça do fêmur esquerdo.


RELATO DO CASO

Paciente do sexo feminino, aos 13 anos de idade foi submetida a osteotomia intertrocantérica valgizante por antecedente de epifisiólise da cabeça do fêmur esquerdo. Aos 42 anos, foi identificado, ao exame físico, encurtamento do membro inferior esquerdo de 1,5 cm em relação ao contralateral. Nesse mesmo ano, após exames de imagem, foi diagnosticada osteoartrite do quadril esquerdo associada a impacto isquiofemoral. Aos 45 anos de idade, a paciente foi submetida a artroplastia total do quadril esquerdo, com melhora significativa dos sintomas.

As radiografias iniciais do quadril esquerdo mostraram achados de epifisiólise do fêmur e a deformidade foi corrigida posteriormente por osteotomia intertrocantérica valgizante (Figura 1). Imagem radiográfica em torno de 30 anos depois da intervenção cirúrgica demonstrou achados de osteoartrite avançada do quadril. Nessa época também foram identificados sinais sugestivos de impacto isquiofemoral com osteoesclerose e irregularidade de contornos nas superfícies do ísquio e do trocanter menor do fêmur, associados a redução do espaço entre essas duas estruturas ósseas (Figura 2B). A medida do espaço isquiofemoral foi 0,8 cm.


Figura 1. A: Radiografia inicial do quadril esquerdo em anteroposterior demonstrando os sinais de epifisiólise, com deslocamento inferomedial da cabeça femoral; nas setas, a fise aberta. B: Radiografia do quadril esquerdo em anteroposterior após a osteo­tomia intertrocantérica valgizante; nas setas, o traço da osteotomia, fixada por placas e parafusos.


Figura 2. A: Radiografia em anteroposterior do quadril esquerdo, cerca de um ano após a osteotomia intertrocantérica valgizante, com sinais de osteoartrite inicial do quadril e redução do espaço entre o trocanter menor do fêmur e a tuberosidade isquiática. B: Radiografia em anteroposterior do quadril esquerdo, cerca de 30 anos após o procedimento, mostra exacerbação dos achados anteriores, com progressão da osteoartrite do quadril e dos sinais de pinçamento do espaço isquiofemoral (setas).



As imagens de tomografia computadorizada confirmaram presença de osteoesclerose e proliferações ósseas reativas no ísquio e no trocanter menor do fêmur, associadas a redução do espaço do quadrado femoral (Figura 3).


Figura 3. A: Corte de tomografia computadorizada no plano axial em janela para partes moles mostra redução do espaço entre o trocanter menor e o ísquio à esquerda, com sinais de hiperostose reativa e perda de volume com lipossubstituição do ventre do músculo quadrado femoral (seta). B: Mesmo corte que em A, porém em janela óssea.



As sequências de ressonância magnética demonstraram redução volumétrica e alteração de sinal do músculo quadrado femoral, com descontinuidade e padrão de edema nas imagens ponderadas em T2 de suas fibras, sendo estes sinais de rotura do músculo decorrente do impacto isquiofemoral (Figura 4).


Figura 4. A: Sequência axial T1 pós-contraste com supressão de gordura mostra redução do espaço isquiofemoral e realce de partes moles na região do músculo quadrado femoral (seta). B: Sequência axial T2 com supressão de gordura demonstra padrão de edema de partes moles interpostas entre o trocanter menor e a tuberosidade isquiática (seta).



DISCUSSÃO

O diagnóstico de impacto isquiofemoral, em geral, se baseia nos achados de imagem, como alterações ósseas reativas e distribuídas em espelho no ísquio e no trocanter menor do fêmur, associadas a redução do espaço isquiofemoral e roturas parcial ou completa do músculo quadrado femoral(13-15). Outros tendões que podem estar envolvidos nessa síndrome são os tendões isquiotibiais e o iliopsoas(14). Estrutura semelhante à bursa ou edema em torno do tendão do iliopsoas podem ser identificados em alguns pacientes com impacto isquiofemoral(15). Alguns pacientes podem apresentar, ainda, hipotrofia muscular e infiltração gordurosa do músculo quadrado femoral(15).

Na literatura é possível encontrar alguma controvérsia sobre haver ou não associação das lesões do músculo quadrado femoral com impacto isquiofemoral(16,17). Torriani et al. demonstraram que o espaço isquiofemoral se encontra significativamente mais estreito em pacientes com anormalidades do músculo quadrado femoral do que no grupo controle(15). Esses autores sugeriram que alterações isoladas desse músculo podem ser multifatoriais, com o impacto isquiofemoral representando uma das prováveis causas. Diagnósticos diferenciais, como estiramento ou rotura do músculo quadrado femoral ou dor muscular de início tardio induzida por exercício, podem eventualmente ser excluídos por meio da história clínica. Enquanto o edema de uma rotura ou estiramento mais comumente ocorre na junção miotendínea, o edema muscular no impacto isquiofemoral acomete o ventre muscular de forma difusa(12).

É importante destacar que as medidas do espaço isquiofemoral dependem do grau de rotação do fêmur durante a aquisição das imagens. Não encontramos, na literatura, estudos prospectivos sobre o impacto isquiofemoral e, portanto, não podem ser excluídas variações no posicionamento dos pacientes nos estudos já realizados. Com o quadril em discreta adução, rotação externa e extensão, o trocanter menor e o ísquio distam normalmente 2,0 cm entre si(13). No nosso caso, essa medida foi 0,8 cm.

Quando o estreitamento do espaço isquiofemoral é congênito, geralmente é bilateral e pode ser um achado incidental assintomático em alguns casos(18).

Todas as pacientes do estudo de Torriani et al.(15) eram do sexo feminino, sugerindo uma possível relação do impacto isquiofemoral com a anatomia da pelve feminina. Além de ter largura maior e profundidade menor, a pelve feminina é caracterizada por tuberosidades isquiáticas que são mais afastadas umas das outras(15). O envolvimento bilateral é descrito em cerca de um terço dos pacientes. Os pacientes afetados são geralmente mais velhos que os pacientes com outros tipos de impacto no quadril(15).

Não encontramos, na literatura, descrição minuciosa dos achados que caracterizam essa entidade na história clínica e no exame físico, mas há relatos de que os pacientes com impacto isquiofemoral podem se apresentar com dor na virilha e na face medial da coxa induzida pela rotação externa do quadril aduzido e em extensão(13). Os pacientes podem também apresentar sensibilidade e dor à palpação da região do trocanter menor(13). A dor pode irradiar distalmente, por irritação do nervo ciático adjacente(13-15).

O alívio completo da dor pode ser alcançado após ressecção do trocanter menor(13), apoiando a hipótese de que o contato anormal do trocanter com o ísquio é responsável pelos sintomas. Apesar de alguns autores recomendarem a descompressão cirúrgica do músculo quadrado femoral com a ressecção do trocanter menor, outros autores favorecem o tratamento conservador ou a injeção de esteroides guiada por tomografia computadorizada(12).

No caso ora descrito, o valgismo do fêmur relacionado à osteotomia corretiva prévia se associou ao desenvolvimento tardio da síndrome do impacto isquiofemoral. O impacto já foi descrito secundariamente a artroplastia do quadril(13).

Concluímos que a síndrome do impacto isquiofemoral deve ser lembrada no diferencial das várias causas de dor no pós-operatório do quadril.


REFERÊNCIAS

1. Loures FB, Furtado Neto S, Pinto RL, et al. Rotational assessment of distal femur and its relevance in total knee arthroplasty: analysis by magnetic resonance imaging. Radiol Bras. 2015;48:282-6.

2. Silva YLP, Costa RZV, Pinho KEP, et al. Effects of iodinated contrast agent, xylocaine and gadolinium concentration on the signal emitted in magnetic resonance arthrography: a samples study. Radiol Bras. 2015;48:69-73.

3. Ribeiro BNF, Salata TM, Antunes LO, et al. Desmoplastic fibroma with perineural spread: conventional and diffusion-weighted magnetic resonance imaging findings. Radiol Bras. 2015;48:266-7.

4. Nogueira-Barbosa MH, Gregio-Junior E, Lorenzato MM. Retrospective study of sonographic findings in bone involvement associated with rotator cuff calcific tendinopathy: preliminary results of a case series. Radiol Bras. 2015;48:353-7.

5. Pessoa J, Dal Sasso AA, Barreto MM, et al. Bilateral elastofibroma dorsi. Radiol Bras. 2016;49:61.

6. Chagas-Neto FA, Nogueira-Barbosa MH, Lorenzato MM, et al. Diagnostic performance of 3D TSE MRI versus 2D TSE MRI of the knee at 1.5 T, with prompt arthroscopic correlation, in the detection of meniscal and cruciate ligament tears. Radiol Bras. 2016;49:69-74.

7. Agnollitto PM, Chu MWK, Lorenzato MM, et al. Glenohumeral interposition of rotator cuff stumps: a rare complication of traumatic rotator cuff tear. Radiol Bras. 2016;49:53-5.

8. Chagas-Neto FA, Dalto VF, Crema MD, et al. Imaging assessment of glenohumeral dysplasia secondary to brachial plexus birth palsy. Radiol Bras. 2016;49:144-9.

9. Tannast M, Siebenrock KA, Anderson SE. Femoroacetabular impingement: radiographic diagnosis-what the radiologist should know. AJR Am J Roentgenol. 2007;188:1540-52.

10. Nunes RB, Amaral DT, Oliveira VS. Radiological propedeutics of femoroacetabular impingement in times of computed tomography and magnetic resonance imaging: what a radiologist needs to know. Radiol Bras. 2011;44:249-55.

11. Rubin DA. Femoroacetabular impingement: fact, fiction, or fantasy? AJR Am J Roentgenol. 2013;201:526-34.

12. Sutter R, Pfirrmann CWA. Atypical hip impingement. AJR Am J Roentgenol. 2013;201:W437-42.

13. Johnson KA. Impingement of the lesser trochanter on the ischial ramus after total hip arthroplasty. Report of three cases. J Bone Joint Surg Am. 1977;59:268-9.

14. Patti JW, Ouellette H, Bredella MA, et al. Impingement of lesser trochanter on ischium as a potential cause for hip pain. Skeletal Radiol. 2008;37:939-41.

15. Torriani M, Souto SCL, Thomas BJ, et al. Ischiofemoral impingement syndrome: an entity with hip pain and abnormalities of the quadratus femoris muscle. AJR Am J Roentgenol. 2009;193:186-90.

16. O''Brien SD, Bui-Mansfield LT. MRI of quadratus femoris muscle tear: another cause of hip pain. AJR Am J Roentgenol. 2007;189:1185-9.

17. Kassarjian A. Signal abnormalities in the quadratus femoris muscle: tear or impingement? AJR Am J Roentgenol. 2008;190:W379, author reply W380-1.

18. Blankenbaker DG, Tuite MJ. Non-femoroacetabular impingement. Semin Musculoskelet Radiol. 2013;17:279-85.










1. Fellow em Radiologia Musculoesquelética, Divisão de Radiologia do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP), Ribeirão Preto, SP, Brasil
2. Professor Associado do Departamento de Biomecânica, Medicina e Reabilitação do Aparelho Locomotor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP), Ribeirão Preto, SP, Brasil
3. Professor Associado da Divisão de Radiologia do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP), Ribeirão Preto, SP, Brasil

Endereço para correspondência:
Dr. Marcello H. Nogueira-Barbosa
Departamento de Clínica Médica, Divisão de Radiologia – FMRP-USP
Avenida Bandeirantes, 3900, Monte Alegre
Ribeirão Preto, SP, Brasil, 14048-900
E-mail: marcello@fmrp.usp.br

Recebido para publicação em 16/12/2013.
Aceito, após revisão, em 8/9/2014.

Trabalho realizado no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (HCFMRP-USP), Ribeirão Preto, SP, Brasil.
 
RB RB RB
GN1© Copyright 2024 - All rights reserved to Colégio Brasileiro de Radiologia e Diagnóstico por Imagem
Av. Paulista, 37 - 7° andar - Conj. 71 - CEP 01311-902 - São Paulo - SP - Brazil - Phone: (11) 3372-4544 - Fax: (11) 3372-4554