Radiologia Brasileira - Publicação Científica Oficial do Colégio Brasileiro de Radiologia

AMB - Associação Médica Brasileira CNA - Comissão Nacional de Acreditação
Idioma/Language: Português Inglês

Vol. 35 nº 4 - Jul. / Ago.  of 2002

RELATO DE CASO
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Page(s) 251 to 254



Sífilis congênita simulando a síndrome da criança espancada: relato de caso

Autho(rs): Beatriz Regina Alvares, Maria Aparecida M.S. Mezzacappa, Cláudia Braga Poterio

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Texto em Português English Text

Descritores: Sífilis congênita, Síndrome da criança espancada, Fraturas ósseas

Keywords: Congenital syphilis, Battered child syndrome, Bone fractures

Resumo:
As autoras descrevem os achados radiológicos dos ossos longos de um recém-nascido com diagnóstico confirmado de sífilis congênita, enfatizando o diagnóstico diferencial com a síndrome da criança espancada. É apresentada a evolução radiológica das lesões nos ossos longos, do nascimento até o quarto mês de vida. Os dados clínicos e laboratoriais do recém-nascido, as radiografias anteriores e os achados radiológicos característicos da doença de base foram essenciais para o diagnóstico desta doença.

Abstract:
We report the radiographic findings in the long bones of a newborn with confirmed diagnosis of congenital syphilis and discuss the differential diagnosis with battered child syndrome. The radiographic findings in the long bones from birth to the fourth month of life are presented. Clinical and laboratory data, the serial x-ray films and the characteristic radiological signs were essential to establish the correct diagnosis.

 

 

INTRODUÇÃO

A sífilis congênita pode ocasionar lesões em vários ossos das extremidades, geralmente com acometimento simétrico. Estas lesões caracterizam-se, radiologicamente, por faixas radiotransparentes e radiopacas, áreas de osteólise metafisária e espessamento periosteal diafisário(1-6).

A literatura tem descrito, mais raramente, na sífilis congênita, a presença de fraturas patológicas nas metáfises dos ossos longos, manifestando-se, ao exame radiológico, por exuberantes calos ósseos(3,5,7).

Em algumas situações, o desconhecimento da doença de base no recém-nascido (RN) e a semelhança dos achados radiológicos pode levar à hipótese diagnóstica de síndrome da criança espancada(1,3,5,7), sendo importante conhecer as características radiológicas específicas de ambas as doenças, que permitam a realização de um diagnóstico correto na criança afetada.

 

RELATO DO CASO

O RN, do sexo feminino, nasceu com 1.910 gramas e idade gestacional de 34 semanas, no Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Caism)/Unicamp.

A mãe apresentou exame VDRL positivo (1/32) durante a investigação pré-natal, sem tratamento relatado. O RN mostrou-se, ao nascer, com lesões de pele bolhosas em palmas das mãos e plantas dos pés e lesões eritematosas disseminadas, características da doença, e também com discreta hepatomegalia e monoparesia do membro superior esquerdo, havendo aparente dor ao manuseio dessa extremidade. O VDRL no RN foi de 1/256 e TPHA reagente. O exame do líquor cefalorraquiano demonstrou hiperproteinorraquia (229 mg/dl) e VDRL ½, caracterizando neurolues. Com esses achados, o RN foi tratado com penicilina cristalina.

Exames radiológicos dos ossos longos, com 24 horas de vida, demonstraram lesões metafisárias nos membros inferiores (Figura 1) e superiores (Figura 2), compatíveis com a doença.

 


 

 


 

Com 15 dias de vida, ainda durante a internação neonatal, novas radiografias constataram espessamento periosteal nas diáfises do úmero esquerdo, fêmur e tíbia bilateralmente, bem como exuberantes calos ósseos nas extremidades proximais dos fêmures, tíbia direita e em ambas as extremidades do úmero esquerdo (Figuras 3 e 4). Na evolução clínica intra-hospitalar não houve referência a traumas.

 


 

 


 

Com quatro meses de vida, o controle radiológico evidenciou remodelamento ósseo metafisário, com desaparecimento dos calos ósseos nos membros superiores e inferiores, persistindo espessamento periosteal nos fêmures (Figuras 5 e 6).

 


 

 


 

DISCUSSÃO

A sífilis congênita é uma infecção transplacentária transmitida da mãe para o feto, em qualquer um dos trimestres da gravidez(8). Ao nascer, os RN podem se apresentar completamente assintomáticos ou com manifestações clínicas como erupção cutânea, anemia, hepatoesplenomegalia e, em alguns casos, síndrome nefrótica(4,8). Em razão da recomendação de VDRL materno, em todas as mães, por ocasião do parto, a grande maioria dos RN com suspeita de sífilis é totalmente assintomática(9,10).

Relatos mais antigos referem que as crianças infectadas pelo Treponema pallidum, nas fases iniciais da gestação, apresentam lesões ósseas, em 70% dos casos, e que em 97% dos pacientes autopsiados, aos seis meses de vida, lesões ósseas típicas da doença são observadas(8).

Mais recentemente, é relatado que a avaliação radiológica, na primeira semana de vida, em crianças nascidas a termo e assintomáticas, apresenta positividade menor de achados, geralmente não-típicos, variando de 0,8% a 20% dos casos(10-12). A razão dessa diferença na freqüência de achados relaciona-se com a precocidade com que a investigação é realizada (menos de uma semana de vida) e no alto grau de suspeição da doença, nos dias de hoje(9).

Dessa forma, a radiografia convencional de ossos longos como exame obrigatório na suspeita diagnóstica para a sífilis congênita, imediatamente ao nascer, fica restrita, atualmente, aos RN sintomáticos, prematuros, bem como quando as mães tenham VDRL positivo, sem tratamento adequado prévio ou durante a gestação(13).

Nos casos positivos, o envolvimento dos ossos longos costuma ser bilateral e simétrico e as regiões metafisárias são especialmente atingidas, apresentando um quadro radiológico de rarefações e/ou aumento da densidade óssea, assim como áreas de destruição e fragmentação óssea(2-5,7,14,15). Quando os contornos metafisários superiores das tíbias apresentam-se destruídos bilateralmente (sinal de Wimberger), caracterizam um sinal radiológico que é considerado patognomônico para o diagnóstico desta doença(3,4,7,14). Tais lesões, além da periostite, são vistas em RN com sintomas ao nascer ou diagnosticados com algumas semanas de vida.

No caso em questão, o RN apresentava clínica de monoparesia e a radiografia mostrou-se fundamental para o diagnóstico, com o achado de fraturas patológicas. Este tipo de lesão é considerado raro, havendo poucos relatos na literatura. As fraturas, quando ocorrem, costumam acometer as regiões metafisárias, e tal localização traumática preferencial pode ser explicada pela inserção frouxa das fibras periosteais nas regiões metafisárias e pelo tecido ósseo desorganizado e fragilizado nas metáfises, caracterizado radiologicamente por bandas radiotransparentes, favorecendo as lesões traumáticas. A consolidação dessas fraturas geralmente é associada a calo ósseo exuberante e o processo de consolidação costuma ser mais lento se comparado com fraturas de ossos normais. Apesar de as fraturas ocorrerem preferencialmente nas metáfises, elas também podem acometer as diáfises ósseas(2,3,5,7).

Fraturas múltiplas em RN também ocorrem na osteogênese imperfecta, e durante a fase de consolidação os calos ósseos são bastante exuberantes(15). Entretanto, nesta doença, os ossos longos apresentam-se radiologicamente adelgaçados e arqueados, o que não costuma ocorrer na sífilis congênita.

O diagnóstico diferencial com a síndrome da criança espancada deve ser considerado quando, ao exame radiológico, aparecem fraturas em vários ossos longos, em fases distintas de consolidação, com prevalência metafisária e exuberante reação periosteal(3,5-7). As fraturas metafisárias são consideradas altamente específicas nesta síndrome e estão relacionadas a mecanismo traumático de torção e tração que é aplicado nos ossos(6).

O diagnóstico definitivo de fraturas ósseas relacionadas à sífilis congênita é estabelecido por intermédio da história clínica da criança, associada a sorologia positiva da mãe, teste treponêmico positivo para o RN e remissão óssea completa das lesões ósseas após o tratamento com penicilina cristalina.

 

CONCLUSÃO

Neste caso observaram-se fraturas consolidadas num RN com sífilis congênita, cujo grau de comprometimento e extensão tinham características semelhantes à síndrome da criança espancada. Os dados clínicos e laboratoriais, as radiografias anteriores e os achados radiológicos típicos da doença de base foram essenciais para o diagnóstico correto dessas alterações.

 

REFERÊNCIAS

1.Caffey J. Pediatric x-ray diagnosis. Chicago: Year Book Med Publ, 1972.        [  ]

2.Campanacci L, Casadei R, De Iure F, Bandiera S. Congenital and acquired syphilis of bone: pathologic fracture with hyperplastic callus. A description of two cases and a review of the literature. Chir Organi Mov 1995;LXXX:95-9.        [  ]

3.Horodniceanu C, Grünebaum M, Volovitz B, Nitzan M. Unusual bone involvement in congenital syphilis mimicking the battered child syndrome. Pediatr Radiol 1978;7:232-4.        [  ]

4.Ikeda MK, Jenson HB. Evaluation and treatment of congenital syphilis. J Pediatr 1990;117:843-52.        [  ]

5.Lim HK, Smith WL, Sato Y, Choi J. Congenital syphilis mimicking child abuse. Pediatr Radiol 1995;25:560-1.        [  ]

6.Nimkin K, Kleinman P. Imaging of child abuse. Pediatr Clin North Am 1997;44:615-35.        [  ]

7.Solomon A, Rosen E. The aspect of trauma in the bone changes of congenital lues. Pediatr Radiol 1975;3:176-8.        [  ]

8.Schulz KF, Murphy FK, Patamasucon P, Meheus AZ. Congenital syphilis. In: Holmes K, Mardh P, Sparling PF, et al., eds. Sexually transmitted diseases. 2nd ed. New York: McGraw-Hill, 1990:821-42.        [  ]

9.Centers for Disease Control. Guidelines for the prevention and control of congenital syphilis. MMWR 1988;37(S1):1-13.        [  ]

10.Moyer VA, Schneider V, Yetman R, Garcia-Prats J, Parks D, Cooper T. Contribution of long-bone radiographs to the management of congenital syphilis in the newborn infant. Arch Pediatr Adolesc Med 1998;152:353-7.        [  ]

11.Brion LP, Manuli M, Rai B, Kresch MJ, Pavlov H, Glaser J. Long-bone radiographic abnormalities as a sign of active congenital syphilis in asymptomatic newborns. Pediatrics 1991;88:1037-40.        [  ]

12.Greenberg SB, Bernal DV. Are long bone radiographs necessary in neonates suspected of having congenital syphilis? Radiology1992;182:637-9.        [  ]

13.Centers for Disease Control. Guidelines for treatment of sexually transmitted diseases. MMWR 1998;47(RR-1):41-6.        [  ]

14.Rasool MN, Govender S. The skeletal manifestations of congenital syphilis. A review of 197 cases. J Bone Joint Surg Br 1989;71:752-5.        [  ]

15.Swischuk L. Diagnóstico por imagens em neonatologia e pediatria. Rio de Janeiro: Revinter, 1991.        [  ]

 

 

* Trabalho realizado no Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Caism) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, SP.
1. Professora Doutora do Departamento de Radiologia da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.
2. Professora Doutora do Departamento de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.
3. Médico Residente do Departamento de Radiologia da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.
Endereço para correspondência: Profª Drª Beatriz Regina Alvares. Rua Alberto de Salvo, 238, Distrito de Barão Geraldo. Campinas, SP, 13084-670. E-mail: alvaresb@terra.com.br
Recebido para publicação em 23/11/2001. Aceito, após revisão, em 2/4/2002.


 
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